segunda-feira, 30 de abril de 2012

Meueu

Naquela enorme biblioteca silenciosa e vazia se encontrava Meueu em mais um dia de trabalho tão vazio quanto a biblioteca e a sua alma. Organizava antigos livros de ocultismo quando derrubou um pesado volume no chão. Parou por um instante a observar o fato com alguma preocupação, em todos estes anos de trabalho nunca derrubara um único livro. Desceu as escadas em que estava e abaixou em direção ao livro no chão. Na página aberta estava escrito em letras grandes “Quem é você? O que está fazendo aqui?”. Meueu levantou os olhos e mirou a extensa biblioteca sem um único pensamento na cabeça. Baixou os olhos novamente e leu na seqüência um começo de texto que dizia: ”Quem não se conhece não é capaz de enxergar a realidade, vive sob a ilusão e mareia seus olhos pelo vazio de significado em que sofre sua alma”.
Meueu carregou o volume aberto com as duas mãos e colocou-o em uma mesa próxima da varanda a qual dirigiu-se e de onde olhou o horizonte detidamente por algum tempo. Logo que os pensamentos lhe voltaram pensou, “eu vejo a realidade”, e voltou para dentro para continuar seu trabalho.
Ao passar pela mesa viu que ao lado de seu livro estava seu insuportável colega de trabalho, que ao ver o desgosto no rosto de Meueu expressou com ironia :
- Veja se não é o Grande Meueu saindo da toca! Já se cansou dos ratos que acompanham sua laia e consomem sua vida? Será que é chegada a hora do grande superior se misturar com o povo,ou ainda não está pronto para ver que não é tão superior assim?!
Meueu levantou os olhos e tomou seu livro pela mão, fechando-o sem interesse levou-o de volta à estante. Desgostoso por encontrar Tirano resolveu ir até a cozinha tomar um café, lá encontrou Raíze comendo bolachas e lembrou-se que não comia nada à muitas horas e seu estomago roncou. Ao ver os olhos compridos de Meueu  sobre o que comia Raíze tomou do saco de bolachas e ofereceu um pouco a ele. Meueu pegou o pacote e começou a comer, mas o sabor lhe agradava tanto e tinha a barriga tão vazia que acabou devorando todo o pacote sem dar-se conta de que não o dividira com a dona. Raíze que se deteve observando-o durante o devorar de suas bolachas olhou-o no fundo dos olhos como se expusesse o do âmago da terra e disse:
- Meueu , a gula de sua mente degluti a verdade de sua existência com tal avidez que tu não és capaz de ver a tempo o que está inserindo em sua alma. A impulsão de sua gula é tamanha que és capaz de expelir uma pedra filosofal que tenha ingerido sem apropriar-se de um único dom dela, sem nutrir-se de suas verdades tal qual se valor não tivesse. Perde seus verdadeiros presentes pelas falhas de tua mente.
Novamente enraivecido pela interação com as pessoas, afastou-se rapidamente dali. Porém, como as palavras dela não lhe fugiam a memória perguntava-se o que seria a tal da pedra filosofal, dirigiu-se a procurar num índice enciclopédico, acabando com um volume na mão em que lia sobre a pedra tão almejada pelos alquimistas para transformar qualquer metal em ouro. Enquanto lia sentiu sutilmente que alguém se aproximava, levantou os olhos e viu alguém que não conhecia olhando pra ele com espanto e dizendo em alarma:
-Meueu aquele que pergunta adentra a maldição de buscar a resposta e perder a inocência, padecer dos desígnios da consciência. Sem saber reverter o caminho do conhecer afoga-se no mar das descobertas que calam a possibilidade de não serem mais vistas.
Ao concluir as palavras saiu por um corredor. Atordoado Meueu procurou seguir-lo, mas viu-se no centro da biblioteca, sobre um símbolo da rosa dos ventos que havia no chão. Olhou para a esquerda e espantado quase perdeu o som da fala. Aquele que seguira, agora era visto como um espelho, o qual ele apontou e vendo-se disse, quase sem voz, “meu eu!”. Olhou para o lado oposto onde estava Tirano, o mesmo se passou e ele disse “meu eu!”. Virou seu rosto para frente, Raíze saía da cozinha,viu de novo seu reflexo e repetiu: “meu eu!”. Com o coração acelerado virou-se para trás e viu o caminho da porta de entrada, por onde passara todos os dias por tantos anos. Saiu para a rua e viu o mundo pela primeira vez. 

Um conto de Raquel Kucker Martins

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