sábado, 28 de abril de 2012

A parede torta!

Em 1980 um famoso médico americano foi trabalhar em um vilarejo ao sul da Prússia. Ele queria ajudar algumas pessoas em uma terra isolada e carente de recursos da medicina, queria também ensinar um pouco do que sabia e aquele lugar formado de pessoas simples parecia o ideal.
Hank acordava às quatro da manhã, quando todos ainda estavam dormindo e fazia silencioso a caminhada até o consultório que ficava no outro lado da vila. Fazia sempre o mesmo caminho e sempre andava sozinho. A cabeça do médico estava o tempo todo nas consultas a realizar e nas possíveis curas de pacientes que o tinham como ultima esperança, pensava também que ainda não tinha conseguido ensinar nada a ninguém e já estava ali há dois meses.
Foi um tropeção que mudou seu destino, uma pedra qualquer mal posicionada, Hank nem chegou a cair, mas voltou a realidade. Percebeu que tinha que prestar mais atenção ao caminho e acabou por notar a beleza e simplicidade das construções daquele lugar, todas sem muros nem cercas inspirando liberdade e mostrando a confiança daqueles cidadãos em seu próprio povo.
Havia uma bela casa, tinha ares de ter pertencido a alguma família grande, a madeira estava um pouco envelhecida e a tinta já sentia os efeitos da exposição constante ao sol. Na parede da sacada havia um quadro com uma foto em preto e branco emoldurada de uma bela mulher que aparentava seus vinte anos.
O fato é que Hank era metódico, aquele quadro estava torto e ele desviou seu caminho para consertar a posição. Subiu devagar os três degraus da entrada, a madeira já desacostumada a visitas rangeu quando ele pisou sobre ela. O médico pôs o quadro no lugar e seguiu seu caminho.
Chegou ao consultório satisfeito com a façanha que havia realizado. Quando passava em direção a sua casa para almoçar, percebeu o quadro novamente torto e novamente arrumou a posição do quadro, na volta ao consultório a cena inusitada se repetiu e na volta para casa a mesma coisa. Hank era insistente e todos os dias arrumava a posição do quadro nas quatro ocasiões em que passava por ele, até que decidiu descobrir quem deixava aquele quadro torto. Arrumou a posição do quadro e ficou a espreita, um casal passava pelo local percebeu o quadro simetricamente bem ajustado e o rapaz logo alterou a posição para que ficasse torto. E assim se seguiu o dia todo, o Dr. arrumava o quadro, se escondia e o primeiro que passava percebia e “arrumava” para que ficasse novamente torto. A certa altura decidiu perguntar a alguém se não achava estranho o quadro estar torto e a única resposta que recebeu foi a de que não era o quadro que estava torto e sim a parede. Aquilo o intrigava cada vez mais, não adiantava arrumar o quadro e não adiantava perguntar por que o quadro estava torto, pois aquela cidade parecia simplesmente não ver isto. A resposta de todos era de que a parede é quem estava torta.
Hank voltou a se dedicar as suas atividades no hospital, sem deixar de arrumar o quadro toda vez que passava por ele, achava que um dia as pessoas perceberiam que a parede estava perfeita e que o correto era ajusta-lo simetricamente a ela.
Havia uma idosa na fila para se consultar, não estava tão mal, apenas tinha idade avançada e ele receitou alguns remédios a ela, na hora de sair ela se voltou para ele e disse:
- É o Sr. quem tem deixado o quadro torto, não é?
- Pelo contrário, eu tenho arrumado a posição dele, mas já que a senhora mencionou, poderia me explicar o porquê de todos acharem que a parede esta torta?
-Claro, mas a história é comprida.
- Tenho tempo.
- Lembro como se fosse ontem, naquela época não era fácil ter uma fotografia, não era como estas máquinas modernas com estes filmes que é só revelar, era caro e precisava de um fotografo e algumas horas parada na mesma posição. Ivana era uma moça bonita e muito cobiçada, Dimitri a conquistou com seus versos e construiu aquela casa com a ajuda de seus irmãos, morava pouca gente por aqui. Ele era tão apaixonado que quando o fotógrafo chegou ao vilarejo ele vendeu algumas joias que eram herança de seus pais e usou tudo para ter uma foto dela, algum tempo depois nasceu Ivanovski e quando a felicidade do casal parecia completa quis Deus que ela adoecesse e de súbito partisse deste mundo. Dimitri ficou muito entristecido e pendurou a foto na sacada onde costumava ficar admirando-a, ele costumava dizer a quem perguntasse que uma obra de arte como aquela merecia ser admirada por todos e por isto não seria justo pendura-la na sala. O garoto crescia indiferente a dor do pai, era pequeno demais quando a mãe morreu. Dimitri sempre reclamava quando ele jogava bola em frente de casa, pois poderia acertar o quadro, mas o garoto achava que não havia gol melhor que as vigas daquela sacada. Acontece que o garoto sabia como dobrar o pai e um dia enquanto ele escrevia, Ivanovski e um colega jogavam bola usando a sacada como gol, o garoto errou o chute e acertou próximo ao quadro que entortou com o impacto. Dimitri saiu irritado aos berros dizendo que já tinha avisado que ali não era lugar, mas o garoto disse que não estava jogando bola e quando ele indagou sobre o porquê de o quadro estar torto o garoto respondeu: “Não é o quadro que está torto, é a parede que está. Quando o senhor estava lá dentro estava certinho, mas agora que esta na porta desequilibrou o peso sobre a casa e ela entortou fazendo parecer que o quadro está torto, quando na verdade foi a parede que entortou”. O senhor consegue imaginar um garoto de seis anos criando uma história dessas do nada?
- Bem criativo mesmo, mas isto fez a cidade toda manter a história do garoto?
- Claro que não Sr Hank, acontece que o garoto cresceu e se tornou um dos jovens mais importantes da região, ajudava com tudo que podia, se alguém tinha dúvidas na escola ele fazia uma aula de reforço, se faltava mão de obra na colheita ele estava lá, se alguém precisava construir podia contar com ele e ele nunca pedia nada em troca. Só que veio a guerra e Ivanovski não voltou, a tristeza foi de todos, Dimitri entortou o quadro e contou a história no velório do garoto. Quando ele morreu há dez anos a casa ficou vazia, mas os habitantes do vilarejo ajudaram a conserva-la bem cuidada e mantiveram a tradição em memória a três pessoas tão fantásticas que fizeram parte da nossa história.
Hank estava emocionado, nunca mais mexeu com o quadro e passou a entender a fixação daquele lugar, percebeu que algumas coisas parecem erradas àqueles que utilizam o prisma errado e que tentara mudar a cultura de um povo ao invés de entendê-la e se adequar a ela. No fim, percebeu que a parede estava torta simplesmente porque o vilarejo queria que estivesse e que se ele achava que não estava era ele o insano.
Foram mais quatro meses de trabalho e ele iria voltar à Nova York em duas semanas, seu substituto veio conhecer o lugar e quando o acompanhava percebeu aquela casa que destoava das demais.
- Esta casa é mais antiga que as outras.
- Verdade.
- Estranho ninguém arrumar a posição daquele quadro, não consigo observa-lo assim sem me incomodar.
- Mike, sinto lhe dizer, mas não é o quadro que está torto, é a parede que está!

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